Decidi trazer a minha mãe para a internet. Nem ela nem o meu pai aderem a estas modas do facebook, ou mesmo das tecnologias. Podemos chamá-los de desactualizados, retrógradas, desinformados, que tudo isso pode ser verdade, mas não é nada disso que me importa.
Nenhum deles tirou um curo superior, nenhum deles teve uma vida com o glamour que merecia, todavia, sempre me entregaram tudo numa bandeja. Até bem tarde, nunca percebi tantas das dificuldades que atravessaram, tantos dos desertos que me transformaram em praia. Eu olhava, é certo, mas via apenas o mar. Eles é que sentiam a areia, rochosa, a espezinhar-lhe os pés, enquanto me levavam num colo caloroso. Estendiam-me a toalha, para eu não sentir como a areia fervia; punham-me atrás o para-vento, para eu não notar como as nortadas afligem. Faziam tudo para que eu não me magoasse, para que não percebesse que o vento nem sempre sopra a nosso favor. Para alguns, isso será errado. Para mim, em parte, também o é. Hoje sei que eles deviam ter vivido ainda mais, que não se deviam ter privado de tantas coisas para mim, porque eles mereciam, merecem e vão merecer sempre uma vida incrível. São pais. São as pessoas que mais amo no mundo.
Sentimos a carência de quem nos faça bater o coração com o ruído dum mar agitado, mas acabamos sempre a dar um abraço sentido aos nossos pais. São eles que nos suportam na ausência doutros, como botes para dias em que marés desencadeiam naufrágios. Mas também são eles que nos fazem mover quando amamos, quando vivemos, quando nos libertamos. Querem sempre o melhor para nós. E a minha mãe, em especial, é exímia nessa arte de me ver como o mais especial do mundo. Tento avisá-la que não, que num instante lhe posso mencionar quatro ou cinco pessoas mais especiais que eu. Mas ela diz-me que não, defende-me no indefensável e depois ataca-me no impensável. Os elogios estão guardados para quando não os mereço e as palavras de desafio para quando mereço os elogios. Vê os problemas onde eu, inebriado pelo fulgor dalgum sucesso ocasional, não os estou a detectar. E depois, nas horas que sei que não tenho defesa – e ela também sabe – guarda-me palavras que me memorem do bom que já fiz. Já chorei muitas vezes com ela. Já chorei muitas vezes com o meu pai. E já chorei muitas vezes com ambos. Em todos os casos, foram choros diferentes. Mas nunca nenhum me doeu tanto como quando senti que os estava a desiludir.
Andei perdido na escola, estive quase para não ir para universidade nenhuma, nem sequer acabar o secundário. Eles atacavam-me, mas doías-lhes mais do que a mim. No dia que o percebi, soube que tudo faria para que eles nunca mais o sentissem. Não o consigo sempre, às vezes resvalos nas pequenas dunas da tentação e perco o rumo da praia que eles esperam, e eu também espero, me esteja sempre guardada. Desde aí, sou demasiado exigente comigo. A maioria dos que me rodeia não o compreende, vê em mim um miúdo que tem sonhos, sim, mas que vive embalado na leveza de uma onda que o traz ao areal. Mas eu, por essa sensação que percebi tarde e pela vontade de ter sempre o que não tenho, ando a maior parte do tempo no revolto das maresias que chocam nos rochedos do paredão. Ando sempre à luta comigo, com os pensamentos que não domino, porque sou dono de uma insatisfação que não consigo explicar. Tenho os receios de perder a base que me suporta, de ter que exigir mais dela, quando já tanto me deram, quem sabe demasiado. Mas, ao mesmo tempo, apetece-me saltar do cimo do paredão para um mergulho longo, sem rumo, que talvez me leve até aquela linha do horizonte que os meus pais sempre me desenharam ao fundo daquele mar que eu via em miúdo – e tantas vezes não ia existia.
Tenho uma sensação de frustração constante, pela necessidade de mais que a minha mãe me passou, mesmo que na maioria das vezes não se apercebesse que o fazia. A vida não é uma praia fácil de encontrar, quase todos ficam no primeiro descampado com mar que lhes aparece. Mas a minha mãe, mais em gestos que em palavras, sempre me disse para não me satisfazer com a primeira praia, para ir atrás da segunda, porque, possivelmente, será melhor. Quase todos estão na primeira apenas por preguiça de procurar uma melhor. Se aqui está bem, não vejo motivo para procurar melhor, pensam eles. No entanto, trouxe também da minha mãe a hesitação. Parados na primeira praia, com um sítio livre, mesmo à nossa frente, também criamos amarras se não estaremos a perder um bom lugar. Eu sou assim, a minha mãe também é assim. A indecisão pesa em nós como a merenda de uma família num domingo de praia. Mas hoje, no dia dela, quero agradecer-lhe por tudo isso. Vivo num carrossel de expectativas e quase sempre salto para a segunda praia. Demoro o meu tempo, dou um passo e pondero, paro mais um pouco, e volto a seguir. Até que chego à segunda praia e penso que a terceira será ainda mais incrível. Avanço mais um pouco e recuo mais um pouco. Será boa ideia? Se calhar essa já será deserta, e a solidão assusta. Então, estanco de novo. Mas volto a andar e encontro a terceira. E depois quero a quarta. Invento uma quinta que já não existe e ando sempre insatisfeito. A minha mãe é isto, uma insatisfação constante que não consegue explicar, uma hesitação castradora e um impulso incontrolável nas palavras. E eu sou isso, também. Devo-o a ela. A ela e ao meu pai, que se completam. Mas hoje o dia é dela e quero dar-lhe os parabéns, nesta internet que ela não frequenta, para que todos saibam: amo-a. Trago na minha genética as incongruências dela, a insanidade de querer mais, quando às vezes estamos bem onde estamos, a incapacidade de estar calado em relação ao que sinto, a vontade incontrolável de, mesmo expondo-me, deixar que todos habitem o meu mundo e percebam o que eu sinto. É óbvio que nunca perceberão, mas é satisfatória a sensação de que nada temos a esconder. A consciência é o nosso nome do meio e a insatisfação o apelido de família. Mas sou feliz, à minha maneira, sou feliz. Porque tenho, tal como vocês todos, a melhor mãe e o melhor pai do mundo. E hoje celebro-o, na pessoa da minha mãe. A mulher a quem posso dar os parabéns, prendas, beijos, abraços, apoio, mas nunca poderei dar o que ela me deu. Uma vida! Obrigado e parabéns, Mãe!