Não pôde combater o cansaço, que lhe embatia por dentro, e entregou-se ao sofá, novamente. Ligou a televisão e deixou as notícias fluírem pela caixinha mágica, perpetuando um som hipnotizador no ar, inebriando-lhe os sentidos e fazendo-o chorar. Estava agora virado para o televisor, sem ouvir nada, e a chorar arrebatadamente – lágrimas de dor, flechas ardentes e resvaladias. Passava-lhe pela cabeça a reminiscência das viagens com a Marta, as férias que fizeram juntos, os simples passeios no Furadouro de mão dada, os abraços com o barulho do mar a bater nas rochas, no Inverno. Era sôfrego o seu choro, sentia tantas saudades. As gotas escorriam em prantos, como uma cavalidade do seu amor ainda existente, ainda forte. Perguntava-se como em dois meses ela o podia ter esquecido tão rápido, se ele ainda pensava nela a cada instante do dia. Uma folha mal arrumada chegava, recordava-se logo como ela o tinha feito mais organizado. Sorria, com o rosto encharcado, a pensar nas vezes que ela dizia que ele ainda seria dono do gabinete de contabilidade. O corpo começou a pesar cada vez mais, já eram muitas horas sem descanso, já eram pensamentos muito pesados. Adormeceu, como um anjo.
Priiimm – Priimmm
Ãh? O que é isto? Era a campainha, estavam o João e o Diogo lá em baixo. Subam, disse pelo comunicador, com uma voz calcinada. Vinda do fundo do poço. Eles subiram e começaram logo a chagar-lhe a cabeça, que era meia-noite e nem conseguiam falar com ele. Lá contou a história do Iphone e eles só o advertiram que devia andar com um telemóvel mais arcaico, nestes dias. Que simpáticos, pensou ele. Começaram todos a fumar um cigarro e a estrear uma garrafa de whisky, que o Nuno tinha pousada na garrafeira.
– Oh, Nuno, conta-me lá como andam essas coisas com a Ana! – Exclamava o Diogo, com o seu jeito descomplexado e pouco consumido.
– Oh, não me leves a mal, mas nem me apetece falar disso. Tenho a minha cabeça feita num caldo. – Dizia, com o olhar dormente, ainda das lágrimas e o rosto a fechar-se como uma carapaça a guardar o seu bichinho.
– Mas como tens andado? Isto com o carnaval é um filme, andamos a mil e nem te temos dado atenção. – Interrogava e desculpava-se, genuinamente preocupado, o outro amigo – o João.
– Opá, adorava dizer-te que ando bem, mas tu sabes que não é verdade. Foi a cena de quinta, aquele filme de ontem, depois de a Marta me ter enviado uma mensagem e tudo isso tem mexido comigo.
– Que mensagem? – Inquiria, num tom alto, o Diogo com os olhos esbugalhados.
– No sábado, à tarde, ela enviou-me uma mensagem a dizer que eu devia esquecê-la, que já eramos passado, esses filmes. E eu respondi frio, mas depois começou a custar-me e um bocado mais tarde mandei outra a dizer que queria que ela fosse feliz e a pedir desculpa. – O João inclinava a cabeça para trás, incrédulo. O Nuno encolhia os ombros, resignado.
– Foda-se. Isso é que não! Eu não vou deixar que te humilhes! – Dizia o Diogo, irritado, mas acima de tudo carregado de compaixão.
– Eu ainda gosto dela, feito tolo! O que é que queres que eu faça? Morro de saudades, só penso naquele sorriso, no doce e meigo daquelas palavras, na forma como a minha pele encaixava na dela. Ando patego, não a consigo imaginar de outra maneira que não perfeita! – Expelia, de enfiada, já com as lágrimas a escorrerem-lhe.
– Eu não te condeno, não te lembras do que eu sofri com a Bárbara? – Replicava o João a pesar no olhar, como que lembrando-se desses tempos difíceis.
– Eu estou lixado, vim cair ao muro das lamentações! – Afirmava, o divertido Diogo, na ânsia de aligeirar o ambiente. Objectivo cumprido, aos poucos foram-se diluindo na garrafa de whisky, o Nuno já tinha ido tomar um duche revigorante e petiscar uma lasanha esquentada.
– Vamos lá beber uma copada ao centro, que ainda vamos muito a tempo! – Dizia o Nuno embebido em whisky e a tentar altivar-se numa fugaz alegria.
– É isso, meu irmão! Umas vezes temos que agir, noutras reagir. IT’S A FUCKING LIFE! – Dizia o Diogo, completamente bêbado, para gáudio dos outros dois. Que grande gargalhada se ouviu!
Dirigiram-se ao centro da cidade e encontraram caras amigas, companheiros de contenda, pernas fatigadas e olhares sobejos – o domingo é um dia farto em cansaços acumulados. Começaram a conversar entre si e o olhar do Nuno movia-se em círculos, rodopiantes, procurando a Ana. Já não falava com ela desde que se tinha despedido, sobre a manhã de hoje. O raio do Iphone faz uma falta danada. Amanhã, sem falta, vou comprar um telemóvel, expulsava em palavras, para dentro de si.
– Relaxa, ela vai aparecer! – Afiançava, com tom gozão, o Diogo. O João, por sua vez, fazia melodia, com uma gargalhada sentida.
O tempo ia passando e eles alternavam entre os passos de dança tímidos e rastejantes, na tenda da praça, e uns bons bocados sentados nas esplanadas ornamentadas em torno. Falavam e divertiam-se com trivialidades, com gozos exacerbados dos que, por infortúnio, se atravessavam na frente deles. Com razoável premência, chegaram-se as cinco da manhã e, por mútuo acordo, rumaram a casa. Houve apenas uma breve paragem, um cachorro delicioso, completamente sugado pelos três, a meio caminho. Agora sim, o sono ia ser fortificante. Amanhã é o grande dia!
Segunda-feira de carnaval, dia de noite mágica, em que as estrelas se vestem de lua e a lua de estrelas, para abrilhantar o que por si é brilhante. É um ano a indagar em ideias e trabalhos esponjosos para, neste dia, saírem, todos compilados, com os fatos mais estapafúrdios, mas mais excelentemente executados. Só vale a diversão, o resto é secundário e pequeno. Todavia, ainda são quatro da tarde e o Nuno está no shopping, de calças de ganga, sapatilhas claras, camisa de linho branca, meia aberta, e casaco do grupo de carnaval. Pede um telemóvel, absolutamente menos capaz que o Iphone, que, porém, lhe permitirá voltar a estar contactável. Antes de sair pediu uma segunda via, que prevalecesse desde início no novo dispositivo, e aproveitou para questionar se receberia a informação das anteriores mensagens – perdidas em conjunto com o telemóvel. O funcionário alertou que não, contudo poderia solicitar, através do centro de mensagens, que essa informação lhe chegasse num prazo de três horas. O Nuno assentiu que sim com a cabeça, entusiasmado. Mais aliviado, com um problema resolvido, partiu em direcção à casa do Diogo, onde aprimoravam os fatos para a noite. Iam de Dartacão – que original! Num instante, recebeu de aguaça todas as mensagens. Duas da Ana e cinco da Marta. Oh não, o que quererá isto dizer?
Ávido, começou a ler as da Ana. Ela glorificava mais uma viagem para casa em conjunto, dizendo depois que à noite não saía, referindo-se a domingo. Nada de extraordinário; nada que não o deixasse um pouco mais feliz e sorridente. A seguir, com um breve suspiro a anteceder, começou a ler as da Marta. Filho da puta; não vales nada; odeio-te; só me arrependo do tempo que passei contigo; são alguns exemplos do que tratavam as mensagens. Incrível, ela culpava o Nuno pela desavença de sábado. Como é possível? Só pode ter sido ele que a convenceu disto, ela não se pode estar a tornar nesta pessoa. Não pode! Ficou com as mensagens dela a batucar na cabeça, como um arraial insuportável. Ele ainda a imaginava a cada pedaço de dia, ainda nutria um respeito desmesurado por ela e era assim que ela o tratava. Sem ele ter culpa! Estava desolado, mas optou por não comentar com ninguém, nem tampouco responder-lhe. Seguiu a ajudar nas minúcias dos fatos e a noite chegou. Foi jantar com o grupo de carnaval, para se encontrar com os amigos de seguida. A bebedeira já estava ampla, já lhe ocupava todos os movimentos e liturgicamente prendia, ou enrolava, as palavras. Chegaram ao centro.
Durante horas, e horas, exultaram a noite mágica. Foram danças em pedras da calçada, em balcões colocados para copos e pessoas felizes, em palcos que já haviam sido de artistas e agora eram de actores de carnaval. O dia já raiava nos olhares perdidos e nas entranhas de um Neptuno, ainda repleto de pessoas. Talvez pela ausência de hábito, durante um dia, de ter telemóvel, esqueceu-se completamente dele. Foi ao bolso, num movimento trapalhão, e lá estavam duas mensagens. Uma era da Ana a perguntar se hoje estariam juntos e a questionar onde ele estava. Porra, foi a única coisa que lhe ocorreu. Mas, esperem, havia outra mensagem.
Marta Crispim – 06h15
Preciso de falar contigo! Diz-me, por favor, onde estás!
Arregalou os olhos e encolheu os ombros. Que horas são, agora? Que mudança de discurso é esta? Nesse instante, sentiu um toque, leve e ao mesmo tempo vigoroso, no seu ombro. De lanço virou-se.
– Eu imaginei que estivesses por aqui. – Disse a Marta, com o olhar embriagado e seitado ao do Nuno. Ele engoliu em seco, aquela bola espessa, proveniente das enormes quantidades de álcool ingeridas. Ficou a olhá-la, vestida de serpentina – com traços de pano colorido, a descerem-lhe pelo corpo. Ficou sóbrio, o álcool desceu à mesma velocidade com que tinha sido bebido.
– Desculpa tudo o que te disse, eu pensava que tinha sido ao contrário. Que tu lhe tinhas batido primeiro. – Explicava a Marta, visivelmente envergonhada e, de alguma forma, receosa.
– O que te fez mudar de ideias, então? – Perguntava o Nuno secamente.
– A Filipa estava lá perto e viu. Contou-me agora à noite. – Disse, baixando o olhar para o chão.
– Pois, mas isso não muda nada do que me disseste. Doeu-me tanto, Marta. Vivemos seis anos em conjunto, dividimos tantas coisas. Como ousaste dizer-me tudo aquilo? Acreditar que tinha sido eu? – A Marta mantinha-se a olhar o chão, com lágrimas a flamejarem pelos olhos. – Eu ainda penso tanto em ti, sinto a tua falta por tantas vezes.
Neste momento a Marta levantou o olhar, com um alvo no rosto do Nuno.
– Pois, mas também andas com outra! – Afirmou indignada, chateada e, seria capaz de dizer, magoada.
O Nuno sorriu, dizendo que não com a cabeça. – Eu nem devia dizer-te isto, mas eu nunca tive nada com ela. Por ser um otário, não fui capaz!
A Marta arregalou o olhar, na direcção dele novamente. – Estás a falar a sério?
– Estou, Marta, estou! – Respondeu seco, com os lábios semicerrados, e olhou em volta, para o vazio. Foda-se, não pode ser! Avistou a Ana, a uns cem metros, com o olhar cravado neles e uma expressão completamente desgostosa e apavorada. Será que tudo me acontece?
– Nuno, olha para mim! – Ele olhou, pálido e resignado. – Eu acabei com o Pedro, é a ti que eu amo. Chega de me enganar, isto não foi mais que uma aventura. Vamos recomeçar de onde parámos, é contigo que tudo faz sentido! – Começou, logo de seguida, a galgar o passo que os separava. Tombou o seu corpo sobre o dele, procurando os seus lábios e o Nuno parou-a, segurando-a com uma mão no peito. E sorriu para ela, deixando-a confusa e com o sorriso a fugir-lhe, ainda assim.
– Sabes uma coisa? Isto era o que mais sonhava. – Agora sim, ela explodiu num sorriso radiante. Antes do Nuno prosseguir, também, com um sorriso nos lábios. – Com as tuas atitudes durante estes dias, com esta oferta de regresso, que agora me fizeste, esclareceste tudo. Ficou tudo tão claro! Eu já não vivo no passado, tenho o presente e o futuro para conquistar. E esses já não são contigo. Não são mesmo!
O Nuno saiu disparado, a correr, desviando-se de cada vulto inoportuno que por ali se encontrava, para chegar junto da Ana. Agarrou-a pelo braço e ela libertou-se, virando-se com uma cara chorosa e descrente. Fria.
– Ana, agora eu sei. Agora eu posso. – Beijou-a com a voracidade de um amor que ardia num lume brando, com chamas acesas e fervilhantes. Ela não conseguiu recusar e, retraída, a sua língua percorreu a dele. Desde sexta que procurava aquele momento, aquela ardência, sem nunca encontrar retorno. Pararam-se no tempo com aquele ósculo! No momento em que os lábios se descolaram, o Nuno sorriu com a mesma luz de um sol, com a mesma alegria de um carnaval constante. Afastou-se um passo, segurando-a pela mão, mirou-lhe cada detalhe, idolatrou-lhe cada pedaço de vida em forma de pele, observou o sorriso que agora lhe saía tímido e com réstias de uma surpresa.
– Ana, és o meu PRESENTE CARNAVALESCO! – Sorriram e… com certeza, esta história teve continuação!
Foi assim a minha primeira aventura no romance, na novela, na mini-série, ou no que lhe queiram chamar. Para mim, foi absolutamente fantástico, desafiante e feliz. Espero ter passado isso, a cada um de vocês. Obrigado por acompanharem e darem sentido ao que escrevo.
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