Ditados… traumas primários!

Meninos, vai começar o ditado!

Ontem falava com um amigo que me confidenciava: “Eu tinha pavor a ditados. Acho que ainda hoje acordo com suores frios a pensar nisso!”. Pronto, está lançado o repto e eu com o meu feroz apetite, pela escrita de banalidades, aqui estou.

Vocês também partilhavam desse pavor a ditados? Achando de alguma forma aborrecido, era um ritual que admirava. Chamo ritual pela solenidade destes pedaços de aula. A professora aprumava-se na zona central do quadro, livro em riste, aparecendo para alguns como uma arma apontada, ligeiro afinar de garganta (hrruumm, hrruumm), olhar apontado como uma flecha à primeira linha.

– Vamos começar meninos! Era uma vez, um menino, de tenra idade… – Prosseguia, ela, com a sua voz rouca derivada de um copo a mais. Diziam as más-línguas.

– Qual foi a última palavra que ela disse? – Perguntava o Pedro, o meu melhor amigo da altura e que assim se manteve por mais alguns anos. Bom rapaz.

Nesses instantes, nas duas primeiras linhas, três talvez, seguia com os meus índices de atenção ao máximo. Cada palavra desmembrava-se em letras soltas que acolhia uma a uma para a formulação delas em aglomerado ser sem erros, sem nada a apontar-lhes. Porém, como criança que era, e ainda hoje sou, ao final de três linhas a atenção dispersava-se. Tinha uma tendência, que ainda hoje mantenho, dificuldade de me concentrar no silêncio. A falta de ruído faz o meu pensamento viajar, parece que assumo uma solidão, logo, um momento de reflexão. Perco o foco. Quando a atenção se dispersava começavam os erros, a interpretação errada dos lances vocais, da rouca professora, a perca das últimas palavras de cada frase. «Já estou lixado» – pensava eu.

– Ele foi à ES-CO-LA, ponto final. – Ditava ela num tom mais elevado e de uma forma mais pausada. Digna de um bom português a falar para um estrangeiro.

Tarde de mais, a minha atenção já lá ia. Entre vírgulas e pontos finas já se multiplicavam as palavras esquecidas e as letras mal interpretadas.

Assim, tenho todas as condições para ser mais um traumatizado com os ditados. Com o silêncio que eles provocavam e com a quebra de atenção que me infligiam. No entanto, a matemática ganhava com larga vantagem no trauma. Números, que dor de cabeça. Isolados são belíssimos, agora a multiplicação, subtracção e divisão deles é outra história.